Nem Blue, Nem Pink Tax – Breves perspectivas sobre tributação e desigualdade gênero

Notadamente um tema de grande repercussão mundial, a busca pela equiparação de gênero – cada vez mais abrangente – atinge e se ramifica nos mais diversos setores da vida das mulheres, inclusive no que diz respeito à tributação no âmbito do consumo pessoal, matéria pouco explorada e de relevante repercussão financeira[1]. O debate se mostra ainda mais pertinente diante de um contexto pandêmico, que acentua as assimetrias de um sistema tributário regressivo sobre o consumo, impactando direta e indiretamente a carga fiscal que recai, em maior grau, sobre as mulheres. É imprescindível a discussão sobre tributação e desigualdade de gênero.

Dadas as características do contexto pátrio de tributação, as quais são estabelecidas, em caráter primário, pela Constituição Federal de 1988, é importante observar tanto a intenção do constituinte em assegurar garantias e direitos de forma bastante minuciosa, quanto à previsão de diversos princípios – como legalidade, segurança jurídica, isonomia, capacidade contributiva, dentre outros –, em vista de garantir maior estabilidade às relações jurídicas, às instituições e à sociedade.

Assim, visando dar vazão econômico-financeira aos objetivos precípuos da Constituição, insere-se o Sistema Tributário Nacional. Isto porque, a despeito de ter sofrido alterações muito tímidas pelo texto constitucional, figurou como meio para consecução (i) da redução das desigualdades sociais e regionais e (ii) da liberdade de empreender, decorrente da necessidade de desenvolvimento, conforme entende o professor Valter Lobato[2]. E dentre as desigualdades sociais e regionais a serem combatidas e superadas, inclui-se a desigualdade de gênero[3].

As medidas adotadas em âmbito ordinário, enquanto regulamentadoras de disposições constitucionais, contudo, não parecem ter sido as mais apropriadas, haja vista nossa tributação ser regressiva e concentrar-se sobre o consumo. Ou seja, incide em maior grau sobre bens e serviços, independemente da renda e do patrimônio dos contribuintes não corresponder a essa realidade, fazendo com que, na prática, quem ganhe menos seja mais onerado, em afronta aos princípios da capacidade contributiva e da isonomia.

Considerando ainda que: pesquisas indicam que mulheres efetivamente recebem salários menores do que homens[4]; produtos destinados às mulheres custam mais caro, e não há qualquer desoneração para produtos essenciais, de uso exclusivo feminino, como absorventes higiênicos, não é difícil verificar verdadeira inobservância aos princípios anteriormente citados e ao princípio da seletividade. Esse fenômeno de variação de preço de produtos em relação ao público-alvo a que se destina (“feminino” ou “masculino, de forma generalista) ou mesmo o sobrepreço de determinados itens exclusivamente oferecidos a mulheres denomina-se pink tax.

É possível constatar, inclusive, diversos exemplos no âmbito da tributação de consumo. Pesquisas mostram que produtos de higiene pessoal feminina, como shampoos e condicionadores, têm custo até 48% mais elevado do que os ofertados aos homens[5]. Em se tratando de produtos exclusivamente destinados a mulheres, como absorventes higiênicos, a Associação Comercial de São Paulo indica que a carga tributária de PIS, Cofins e ICMS remonta 34,5% – percentual extremamente alto ainda que o IPI não componha esse valor[6].

Além disso, aponta-se que, em relação à regra atual de tributação da pensão alimentícia, vige autorização à dedutibilidade dos valores pagos (comumente pela figura paterna) e determinação de oferecimento à tributação dos valores recebidos (em regra figura materna) a quem declarar como dependente o alimentado – em regra a mãe: que já conta com salário mais baixo[7], tributação sobre bens e serviços mais onerosa, elevada cobrança com padrão estético, e, geralmente, assume maiores responsabilidades em relação à criação e à educação dos filhos, além das tarefas domésticas (trabalho não remunerado).

Não à toa, pode-se afirmar que tais disparidades se intensificaram durante a pandemia de Covid-19. Afinal, as jornadas triplas ou quádruplas tornaram-se ainda mais desgastantes, pois às pesadas obrigações somaram-se o confinamento, a cobrança por produtividade e a recorrente sobrecarga mental de “dar conta de tudo”.

Em que pese não exista qualquer previsão legal autorizando ou instituindo a sobrecarga fiscal de “produtos femininos” (prática que, inclusive, seria frontalmente inconstitucional), os casos concretos indicam uma realidade diversa. Com efeito, verifica-se um viés discriminatório implícito na tributação sobre bens e serviços nacionais, assim como naqueles referentes à realidade estadunidense, analisados pela professora Janet Gale Stotsky[8], resultando na desarmônica disponibilidade financeira entre homens e mulheres e nas desiguais relações protagonizadas por ambos.

Não restam dúvidas de que há espaço para aprimoramentos e de que o engajamento da sociedade e das instituições é fundamental para impulsionar maior igualdade de gênero. Fato é que, por se tratar de um problema a nível mundial, cada país se encontra em um estágio de evolução. Em âmbito nacional, o Supremo Tribunal Federal, no final de 2020, chancelou uma importante conquista ao reconhecer a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade, sob a acertada lógica de que a tributação agravava a desigualdade de gênero e tornava a contratação de mulheres mais onerosa em vista de maiores despesas com o pagamento de tributo que recaía exclusivamente sobre esse tipo de contratação.

Além disso, aponta-se a existência de diversos Projetos de Lei, em trâmite no Congresso Nacional, que objetivam amenizar as discrepâncias na tributação acima indicadas, visando auxiliar principalmente mulheres em situação de vulnerabilidade; bem como da Reforma Tributária, da qual se espera ações concretas de revisão da concentração da tributação sobre o consumo; das alíquotas sobre a tributação sobre a renda; de novas hipóteses de tributação sobre o patrimônio; e de desoneração de produtos essenciais, ainda que sejam destinados somente a determinado público.

Por fim, seguindo as lições de Justice Ruth Bader Gingsburg[9], conclui-se este breve artigo de forma a provocar o debate desta temática, seja por meio de webinars/lives[10], filmes/séries/seriados[11], podcasts ou perfis em redes sociais[12], além da leitura de produções acadêmicas sobre o tema, escritas pelas professoras Misabel Derzi, Tathiane Piscitelli, Raquel Preto e Pilar Coutinho Elói.

 


Autoras:

BEATRIZ ALVES DE CARVALHO. Pós-graduanda em Direito Tributário pelo Cedin. Graduada pela UFRGS. Advogada.

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GABRIELA CARGNIN FRANZÓI. Graduada em Direito pela PUCRS. Advogada atuante no Direito Tributário.

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[1] Pode-se dizer que o debate entre desigualdade de gênero e tributação remonta, ao menos, desde o movimento sufragista, ocorrido entre final do século XIX e início do século XX, tendo em vista que este inspirou-se na máxima de que as mulheres não mais pagariam impostos se não pudessem ser representadas – tal qual ocorrera na Guerra Civil Americana sob lema “no taxation without representation”. Acesso em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tributacao-e-genero-03052019#sdfootnote10sym.

[2] Em aula aberta disponível: https://www.youtube.com/watch?v=ikIpG4iFeSI Acesso em 15.05.2021.

[3] Afinal, o art. 3º, IV, CRFB, dispõe que se constitui como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

[4] Acesso em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-03/apos-7-anos-em-queda-diferenca-salarial-de-homens-e-mulheres.

[5] Acesso em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/materias-especiais/20453-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html.

[6] Acesso em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/12/03/pink-tax-as-mulheres-gastam-mais-do-que-os-homens-ou-apenas-pagam-mais-caro.

[7] A exemplo: (i) https://observatorio3setor.org.br/noticias/diferenca-salarial-entre-homens-e-mulheres-aumenta-apos-7-anos/#:~:text=Em%202019%2C%20a%20diferen%C3%A7a%20aumentou,sal%C3%A1rios%20menores%20em%20sete%20delas; e (ii) https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2021/01/28/caged-mulheres-perdem-posicoes-de-trabalho-enquanto-homens-tem-mais-oportunidades-e-acesso-a-novas-vagas.ghtml;

[8] STOTSKY, Janet Gale. Gender Bias in Tax Systems. Washington, D.C.: International Monetary Fund, 1996. IMF Working Papers; Working Paper; No. 96/99.

[9] “Fight for the things that you care about. But do it in a way that will lead others to join you”.

[10] Sugere-se (i) Gênero e Direito Tributário: a influência da tributação nas desigualdades entre homens e mulheres Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=14fyQ97gDb8&t=2s; (ii) Desigualdade no Tributário – Uma questão de cor e gênero? – https://www.youtube.com/watch?v=znpfWGuxtm8; e (iii) Live WLM – Bate-papo WIT – Women in Tax https://www.youtube.com/watch?v=Lk-ubAnzSXg.

[11] Sugere-se (i) On the basis of sex; (ii) Sufraggette; e (iii) Period. End of a sentence.

[12] Sugere-se (i) Women in Law Mentoring; (ii) Women in Tax; (iii) Tributos a elas; (iv) É da sua conta.

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