Por Samantha Porto
1. Introdução
Nos últimos anos, o fenômeno que ficou conhecido como “uberização” das relações de trabalho — caracterizado pela mediação tecnológica de plataformas digitais que intermediam serviços prestados por autônomos ou microempresários — tem ocupado grande espaço no debate jurídico-trabalhista no Brasil, e não é para menos.
Em 2025, o STF iniciou julgamento de grande repercussão sobre o tema, cujos efeitos poderão se estender para milhares de processos na Justiça do Trabalho. Este artigo se propõe a examinar: (2) o que se entende por “uberização”; (3) o estágio atual do julgamento no STF; (4) os possíveis impactos na esfera trabalhista; e (5) uma breve reflexão crítica sobre o futuro das relações de trabalho mediadas por plataformas no Brasil.
2. O conceito de “uberização”
O termo “uberização” deriva da plataforma Uber, mas passou a designar de forma geral a modalidade de prestação de serviços via plataformas digitais em que o trabalhador é formalmente autônomo ou pessoa jurídica (PJ), contudo, na prática, se insere em uma lógica produtiva controlada ou mediada por algoritmos, com pouca ou nenhuma subordinação formal, registro ou proteção típica da relação de emprego.
Alguns dos elementos frequentemente associados ao fenômeno incluem:
- a intermediação por aplicativos ou plataformas que conectam ofertantes e tomadores de serviços;
- a flexibilização ou on-demand (sob demanda) da prestação;
- a ausência de controle direto visível (ou formal) da empresa sobre a jornada, local ou modo de execução, embora existam indicativos tecnológicos de controle (algoritmos, avaliações, ranking, tarifa mínima, recusa de corridas, etc.);
- a redução ou eliminação de vínculo empregatício formal, acarretando menor proteção previdenciária, trabalhista ou social para o prestador;
- a externalização de riscos ao prestador, como verdadeiro empreendedor.
3. O julgamento no STF e sua tramitação até o momento
A controvérsia está em julgamento no STF por meio de dois processos principais: o Recurso Extraordinário (RE) 1446336 (relator Edson Fachin) envolvendo a Uber, e a Reclamação Constitucional RCL 64018 (relator Alexandre de Moraes) envolvendo a plataforma Rappi.
Alguns marcos relevantes:
- Em 28 de fevereiro de 2024, o STF reconheceu a repercussão geral do tema relativo à “uberização” (tema 1291) e da pejotização (tema 1389).
- No dia 1º de outubro de 2025, o julgamento foi iniciado com a leitura dos relatórios e sustentação oral.
- No dia 2 de outubro, o presidente do STF, Edson Fachin, suspendeu o julgamento por aproximadamente 30 dias para que os ministros pudessem analisar com mais profundidade os argumentos.
- A retomada do julgamento está marcada para o dia 03 de dezembro de 2025.
No mundo do trabalho o desfecho é aguardado com ansiedade, eis que o impacto prático é elevado: segundo estimativas, cerca de 10 mil processos na Justiça do Trabalho aguardam a decisão da Corte para progredir. Como se vê, trata-se de matéria estrutural, com repercussão macroeconômica, regulatória e trabalhista.
4. Possíveis impactos na área trabalhista
O resultado desse julgamento, seja qual for, implicará uma série de desdobramentos no direito do trabalho brasileiro. A seguir, alguns dos principais impactos:
4.1 Reconhecimento massivo de vínculo empregatício (cenário muito pouco provável, considerando os entendimentos da própria Suprema Corte até o momento sobre matérias correlatas) – caso o STF entenda que a prestação de serviços de motoristas ou entregadores por apps configura relação de emprego, haverá reflexos em milhares de reclamatórias trabalhistas – com efeitos de retroatividade, pagamento de verbas como férias, 13º, FGTS, horas extras, aviso prévio etc. Esse cenário pode implicar:
- Elevação de custos para as plataformas e eventual repasse aos preços de oferta.
- Reorganização dos contratos de trabalho, possivelmente adoção dos regimes de emprego formal ou híbrido.
- Ampliação da competência da Justiça do Trabalho para essas demandas.
4.2 Reconhecimento da autonomia e modelo de prestação autônoma regulada – caso prevaleça o entendimento de que não há vínculo empregatício formal, desde que observados requisitos de autonomia real e ausência de subordinação, então:
- As plataformas continuariam a contratar prestadores autônomos ou via pessoa jurídica (PJ/MEI), com menor nível de proteção típica da CLT.
- Haverá pressão regulatória para criar regimes híbridos ou diferenciados de proteção para esses trabalhadores (ex: seguros, contratos de trabalho atípico, proteção social específica).
- Possível manutenção ou incremento da “Gig Economy” no Brasil, com todos os debates correlatos (precarização, insegurança social, flexibilidade).
- Regulação legislativa ou normativo-administrativa posterior – independentemente do resultado, é provável que haja impulso para regulação específica das plataformas e das “tarefas sob demanda”, tais como:
- Legislação federal ou projetos de lei regulando plataformas, definindo direitos mínimos ou modelos de contratação;
- Normas regulamentares do Ministério do Trabalho (ou equivalente) para categorias de trabalhadores por apps;
- Regulação internacional como referência: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já discute esse tema globalmente.
5. Breve reflexão crítica
A chamada “uberização” desafia paradigmas clássicos do direito do trabalho, especialmente no que tange aos requisitos da subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade (art. 3º, da CLT). Em um mundo digital, essas categorias tradicionais ficam tensionadas: o controle pode ser algorítmico, o prestador pode operar em diversas plataformas, a jornada é flexível, remuneração por tarefa/demanda ou corrida.
Se o direito do trabalho mantiver rigidamente o “contrato-emprego clássico”, corre-se o risco de marginalizar essa massa de trabalhadores e gerar lacunas de proteção. Por outro lado, a aceitação irrestrita da autonomia “sem garantias” pode significar uma erosão dos direitos arduamente conquistados ao longo de todo o século XX.
Dessa forma, trazendo uma opinião técnica e humanizada destes 16 anos na advocacia trabalhista, compartilho do entendimento do ministro Flávio Dino, onde a solução talvez seja uma via intermediária, o tão buscado caminho do meio/equilíbrio: uma “liberdade regrada” onde o modelo de trabalho via plataforma seja reconhecido, mas acompanhado de regulação adequada que assegure direitos mínimos e proteção social.
Além disso, o Brasil enfrenta o desafio de compatibilizar inovação econômica e emprego decente, nos termos da OIT, e evitar a criação de uma “zona de precarização” trabalhista. A decisão do STF deverá, portanto, levar em consideração não apenas interesses empresariais e inovação, mas também a dignidade da pessoa humana, a proteção do trabalho e a função social da empresa (art. 170 e art. 1º CF/88).
Por fim, cabe destacar que o resultado desse julgamento não encerra o debate: será necessário acompanhamento legislativo, negociado coletivo, inserção de novas formas de proteção social e um papel ativo do Estado, das instituições de trabalho e da sociedade como um todo para garantir que a “uberização” não se transforme em sinônimo vazio de precarização.
Concluindo, o julgamento aberto no STF sobre a “uberização” representa um marco relevante para o direito do trabalho brasileiro. O resultado poderá reconfigurar o mapa das relações de trabalho mediadas por plataformas digitais, com impactos para empresas, trabalhadores, jurisdição e regulação. Independentemente do desfecho, o tema exige atenção imediata de juristas, operadores do direito, sindicatos e empresas, para se adaptarem a um novo cenário laboral que mescla autonomia, tecnologia e desafios regulatórios.
A esperança é de que essa transição ocorra de forma a conjugar flexibilidade, inovação e proteção, sem o viés de radicalismos e verdades absolutas, uma vez que a sociedade evolui e precisamos de forma responsável evoluir com ela.


