Mobilização pela derrubada do veto à distribuição gratuita de absorventes higiênicos na Lei 14.214/2021

No dia 6 de outubro, o presidente sancionou a Lei 14.214/2021, que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, mas vetou os principais pontos do texto aprovado pelos parlamentares, dentre eles o que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias.

A Lei é oriunda do Projeto de Lei 4.968/2019, aprovado em agosto pela Câmara dos Deputados e em setembro pelo Senado Federal, por unanimidade, e cria uma política pública destinada a combater o problema da pobreza menstrual que afeta quase 6 milhões de pessoas no Brasil. Ao vetar o programa de distribuição gratuita de absorventes, o presidente alegou que ele seria inconstitucional, contrário ao interesse público e avesso à Lei de Responsabilidade Fiscal. Nenhum desses argumentos minimamente se sustenta numa análise jurídica e política da questão. Por isso a pressão para que o Congresso derrube esse veto está só começando.

O direito à higiene menstrual é uma questão de saúde pública mundial e de direitos humanos reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Está também contemplado na meta 3.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que visa assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais. Além disso, o artigo 6º da Constituição Federal de 1988 estabelece que o direito à saúde é um direito social, portanto, fundamental.

Mais de 4 milhões de meninas brasileiras não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas, conforme relatório “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), publicado em 28 de maio de 2021[1]. O relatório aponta que uma a cada quatro jovens entre 12 e 19 anos não foi à escola alguma vez por não ter absorventes íntimos. O uso de produtos inadequados nesses períodos, como pedaços de pano, papel ou miolos de pão podem gerar problemas fisiológicos e emocionais, conforme apontado pelo relatório:

Como consequência desse insuficiente ou inadequado manejo da menstruação podem ocorrer diversos problemas que variam desde questões fisiológicas, como alergia e irritação da pele e mucosas, infecções urogenitais como a cistite e a candidíase, e até uma condição que pode levar à morte, conhecida como Síndrome do Choque Tóxico. Do ponto de vista de saúde emocional, a pobreza menstrual pode causar desconfortos, insegurança e estresse, contribuindo assim para aumentar a discriminação que meninas e mulheres sofrem. Põe em xeque o bem-estar, desenvolvimento e oportunidades para as meninas, já que elas temem vazamentos, dormem mal, perdem atividades de lazer, deixam de realizar atividades físicas; sofrem ainda com a diminuição da concentração e da produtividade. (p. 11-12).

Esse problema afeta também as mulheres em situação de rua, que não têm recursos para adquirir absorventes. Afeta mulheres encarceradas, já que boa parte dos presídios não fornece absorventes ou fornecem em quantidade insuficiente ao período menstrual[2]. Afeta não somente mulheres, mas todas as pessoas que menstruam, incluindo homens trans e pessoas não-binárias. Afeta sobretudo as pessoas negras, maior contingente da população que se encontra em situação de vulnerabilidade social e econômica.

A necessidade de absorventes descartáveis para o período menstrual justifica-se também pela falta de banheiros em residências e muitas escolas no Brasil. De acordo com a pesquisa elaborada por Trata Brasil em 2018, 15,2 milhões de brasileiras não recebem água potável em suas casas, 26,8 milhões de mulheres não possuem sistema de escoamento sanitário adequado e 1,5 milhão não dispõe nem mesmo de banheiro em casa[3].

O contexto de pobreza agrava esse problema. Se considerarmos a necessidade de aproximadamente 20 absorventes íntimos por ciclo menstrual, ao custo unitário de R$ 0,30 a R$ 0,80[4], teríamos um gasto mensal aproximado de R$ 6 a R$ 16.  Esse valor equivale a cerca de 10% da renda mensal média per capita no extrato mais pobre da população, que é de R$ 155,89[5], o que impossibilita o acesso a produtos de higiene íntima para uma parcela significativa das mulheres brasileiras.

Há estudo realizado na Universidade de Yale que relaciona o uso adequado de absorventes à redução de risco de endometriose, doença que causa fortes dores no abdômen, infertilidade e aumento o risco de câncer de ovário[6].

Deve ser enfatizado, por fim, que o projeto de lei não conflita com as regras de autonomia das redes e estabelecimentos de ensino, pois deve prevalecer sobre regras da Administração Pública a medida que visa preservar a saúde e dignidade da pessoa humana. Tampouco conflita com a Lei de Responsabilidade Fiscal. O projeto indicou expressamente as fontes de custeio para o programa dentro do Fundo Penitenciário Nacional, das dotações orçamentárias disponibilizadas pela União ao Sistema Único de Saúde (SUS) para a atenção primária à saúde e no âmbito da legislação relativa às cestas básicas no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Além disso, durante a tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, a Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres apresentou parecer[7] indicando a estimativa do impacto orçamentário-financeiro do projeto, considerando o potencial de beneficiar com o programa aproximadamente 26,1 milhões de mulheres na faixa etária entre 12 e 51 anos – compreendendo aquelas inscritas no Cadastro Único do Ministério da Cidadania[8], além de mulheres em situação de rua não inscritas no Cadastro Único, mulheres no sistema prisional e adolescentes cumprindo medidas socioeducativas de liberdade assistida.

Por tudo isso, a derrubada do veto ao programa de distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias é fundamental para a garantia da dignidade menstrual das mulheres brasileiras em situação de vulnerabilidade econômica e social.

Parlamentares da bancada Feminina da Câmara dos Deputados estão se mobilizando para derrubar o veto. A WLM, entre mais de 150 organizações da sociedade civil, também está se mobilizando. Precisamos também do seu apoio. Por isso, converse com suas amigas e familiares, explique a importância do projeto para dignidade das pessoas que menstruam e vamos juntas defender a derrubada do veto presidencial. Clique aqui para acessar a página do abaixo-assinado direcionado ao Congresso Nacional.

 


Autora:

Renata de Paiva Puzzilli Comin[1] e Jessica Baqui[2], associadas da WLM

[1]          Renata de Paiva Puzzilli Comin é mestra em Gestão e Políticas Públicas pela EAESP da FGV/SP, graduada em Direito pela PUC/SP e em Ciências Sociais pela USP, e pós-graduada em Direito Civil pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas.

[2]          Jessica Baqui é graduada em Direito pelo IDP, especialista em Direito Processual Civil (IDP) e em Direito Civil (PUC-MINAS), e pós-graduanda em Direito Administrativo (IDP).

 


Referências:

[1]          https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf

[2] QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam: A brutal vida das mulheres – tratadas como homens – nas prisões brasileiras. Rio de Janeiro: Record, 2015.

[3] BRK AMBIENTAL. INSTITUTO TRATA BRASIL. Mulheres & Saneamento. Disponível em: http://tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/pesquisa-mulher/brk-ambiental-presents_women-and-sanitation_PT.pdf

[4] Conforme estimado pelo Parecer ao PL 4968/2019 na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, disponível no site da Câmara dos Deputados.

[5] SALATA, Andre Ricardo, RIBEIRO, Marcelo Gomes. Boletim Desigualdade nas Metrópoles. Porto

Alegre/RS, n. 04, 2021. Disponível em: <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/>

[6] MEADDOUGH, Erika. OLIVE, David. GALLUP, Peggy. PERLIN, Michael. KLIMAN, Harvey. Sexual Activity, Orgasm and Tampon Use Are Associated with a Decreased Risk for Endometriosis. Gynecologic and obstetric investigation. 2002. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/11320843_Sexual_Activity_Orgasm_and_Tampon_Use_Are_Associated_with_a_Decreased_Risk_for_Endometriosis.Acesso em: 28 out. 2021

[7] Parecer da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher ao PL 4968/2019, de 24/08/2021, disponível no site da Câmara dos Deputados.

[8] Podem ser cadastradas no Cadastro Único famílias de baixa renda, aquelas com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo; ou as que possuam renda familiar mensal de até três salários-mínimos (art. 4º, inciso II do Decreto nº 6.135, de 26 de junho de 2007).

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